7 de abr. de 2010

Torcedor '1.000' crê no título Paulista

O encontro havia sido marcado para as 9h, mas o repórter acabou chegando atrasado, perdendo-se pelas ruas sinuosas do bairro Centreville, em Santo André. Do antigo loteamento planejado, com casas em estilo mediterrâneo erguidas em meados dos anos 1970, poucos sinais restaram. As construções foram se desfigurando com puxadinhos e quartinhos extras. Só o traçado das ruas lembrava o charmoso bairro.
O irrequieto Nelson Cerchiari, 83 anos, veio abrir o portão. Estava sorridente e alertou: "Eu estou meio surdo, viu?". Dono da carteirinha de sócio nº 15 do então Santo André Futebol Clube, anotador oficial e testemunha ocular do primeiro gol de Pelé, falou do calor descomunal daquela manhã e ofereceu café.
Nos ajeitamos na sala para a conversa. Na mesa de jantar já estavam sete ou oito pastas abarrotadas de lembranças relacionadas ao Ramalhão. Recortes de jornais, anúncios publicitários, cartas, pôsteres, tabelas de jogos, adesivos, chaveiros, flâmulas e até um souvenir especial conseguido com as próprias mãos: grama tirada do Maracanã depois do jogo que valeu a conquista da Copa do Brasil, em 2004.
Por tudo isso, seu Nelson já mereceria uma medalha. E ela veio. Ganhou uma autêntica, da CBF, de campeão daquela competição. Presente de um dirigente do clube que a recebeu em pleno estádio, naquele 30 de junho.
Torcedor fanático e ao mesmo tempo discreto, atualmente é mais comum encontrá-lo sozinho no estádio, em algum canto, com o radinho colado ao ouvido, atento ao jogo. Diz ter assistido a mais de 1.000 jogos do Santo André, desde a fundação, em 1967. Doou ao memorial do clube duas pastas com mais de 600 ingressos das partidas a que compareceu, quase todos com o resultado anotado no verso. "Tinha muito mais. Eu perdi vários nas mudanças de residência e teve ano que entrei nos jogos com uma permanente", faz questão de explicar.
A idade nunca foi empecilho para longas viagens atrás do time. Sempre por conta própria ou em ônibus da torcida, conheceu dezenas de estádios em todo o interior paulista, com direito a aventuras que fariam corar outros vovôs de cabelos brancos.
"Em Limeira, anos atrás, o jogo terminou em uma encrenca. Eu e um amigo acabamos saindo do estádio do lado contrário onde estavam os ônibus da nossa torcida. Fomos correndo pela rua até que um carro da polícia veio atrás de nós. Eles pararam e disseram: ‘podem subir''. Nos levaram de camburão até os ônibus", ri ao lembrar da situação.
Também esteve em Porto Alegre, em 1984, assistindo ao heróico empate por 4 a 4 entre o Grêmio, que acabara de se tornar campeão do mundo, e Santo André, em pleno Estádio Olímpico. Era a primeira vez que o time disputava o Brasileiro da primeira divisão.
Ainda hoje seu Nelson continua com o pé na estrada. Em 14 de março, foi sozinho até Barueri para ver Corinthians e Santo André, pelo Campeonato Paulista. Quase duas horas para ir, desde o Centreville, divididas entre ônibus e trens, e mais duas horas para voltar, em pleno domingo à noite.
Bem diferente da viagem mais prazerosa que realizou, em 2004, para ver o Ramalhão enfrentar o todo poderoso Flamengo. Naquela ocasião ele não voltou ao Grande ABC junto com a torcida.
Tarde da noite, fim de jogo e depois da festa em campo, os quinhentos e tantos torcedores do Santo André esperaram quase uma hora para deixar o estádio e pegar os ônibus.
Tiveram de aguardar a saída dos 70 mil flamenguistas. Apenas dois torcedores conseguiram sair no meio dos adversários: Nelson Cerchiari e outro amigo septuagenário. Os dois iam ficar e aproveitar a estada na Cidade Maravilhosa. Alguns colegas de ônibus imaginaram que fossem comemorar o título e matar saudades da Lapa, a mais antiga zona boêmia carioca. Seu Nelson garante que não. Diz que foi jantar com parentes.
Como torcedor, ele tem a mesma idade do clube. Contador aposentado, foi o secretário-geral da primeira diretoria, presidida pelo ex-prefeito Newton Brandão, tendo por vice outra personagem histórica do clube: Wigand Rodrigues dos Santos. Atualmente é conselheiro.
E com a autoridade de quem testemunhou todos os altos e baixos do time por mais de 40 anos, reforça a confiança no Ramalhão na reta final do Campeonato Paulista. "Eu vou acompanhar tudo nas semifinais e, quem sabe, não vem mais uma estrela para a camisa?"
Por distração, ele anotou errado o primeiro gol de Pelé
Entre as inúmeras situações curiosas vividas por Nelson Cerchiari, uma envolve a maior estrela do futebol mundial de todos os tempos. O velho torcedor do Santo André é frequentemente procurado por veículos de imprensa para contar a história do primeiro gol da carreira de Pelé.
Na tarde de 7 setembro de 1956, no Estádio Américo Guazelli, no Bairro do Ipiranguinha, Cerchiari era o mesário da Liga Santoandreense de Futebol responsável pela súmula do jogo amistoso entre Santos e Corinthians de Santo André (Corinthinhas).
Um garoto desconhecido, prestes a completar 16 anos, apelidado Gasolina pelos companheiros de equipe, entrou no segundo tempo, no lugar do cosagrado centroavante Del Vecchio.
O rapaz marcou o quinto gol dos 7 a 1 que o Santos impôs ao Corinthians. Na confusão com a lista de nomes dos jogadores, Cerchiari anotou o gol para outro atacante santista. Assim ficou registrado.
Foi só no fim da década de 1960, quando o Rei do Futebol estava prestes a fazer o milésimo gol, que a troca foi descoberta.
"Na França, o repórter de uma rádio do Rio de Janeiro perguntou ao Pelé se ele se lembrava do primeiro gol como profissional e ele disse que tinha sido em Santo André, em 1956, contra o Corinthians Futebol Clube. Só assim é que ficamos sabendo que o primeiro gol assinalado por Pelé foi aquele em que me enganei na marcação", conta Cerchiari.
A imprensa veio checar a história e seu Nelson fez questão, na época, de ir aos arquivos da Liga de Futebol corrigir a súmula. Até hoje guarda uma cópia do documento, devidamente retificado.

por Luiz Henrique Gurgel